Ainda com São Paulo, vejamos algumas de suas ultimas cartas.
Colossenses
1. A comunidade de Colossos[1]
Colossos ficava na região da Grande Frigia, situada numa área de caráter vulcânico. Eram frequentes as emanações sulfurosas e outras manifestações da natureza que faziam com que os moradores pagãos dessa região venerassem forças ocultas personificadas. A comunidade na foi fundada por Paulo, como ele deixa expresso em Cl 2,1. Em At 2,10 é citada a presença de habitantes da Frígia no dia de Pentecostes, o que pode explicar a existência de um cristianismo pré-paulino nessa região. Durante o período em que Paulo esteve em Éfeso ele poderia facilmente comunicar-se com Colossos e com outras Igrejas vizinhas, como Laodiceia, que é citada na carta. Ao que parece, mesmo não tendo fundado a comunidade, Paulo age com autoridade sobre ela, da mesma forma que age sobre as comunidades que havia fundado. Epafras, citado na carta, teria sido evangelizado por Paulo e se tornado o apóstolo direto de Colossos, que após a morte de Paulo passou para o pastoreio de João, assim como as outras Igrejas da Ásia Menor.
2. Autoria e datação
A carta é uma dêutero-paulina. O problema da autoria se dá em virtude do estilo, do conteúdo e do vocabulário, que se diferencia das proto-paulinas. O estilo é diferente porque neste escrito Paulo muda de assunto rápido, possui um temperamento forte. Com relação ao vocabulário, termos que são próprios de Paulo, como ‘justificação’, ‘justiça’, ‘justo’, não aparecem. Com relação ao conteúdo, alguns temas aparecem abordados de outra forma, como a cristologia que, nas proto-paulinas insiste em falar do Cristo crucificado, e aqui Paulo trabalha mais a questão as pré-existência do Verbo. Com relação à eclesiologia, nas outras cartas Paulo fala mais da comunidade local, aqui Paulo apresenta o termo ‘ekklesía’ numa dimensão universal (cf. Cl 1,8 e 1 Cor 12,12). Alguns também vêem em 4,18, na expressão ‘meu próprio punho’ um apelativo de um outro autor para atribuir a carta a Paulo. Alguns autores vão defender a autoria paulina dizendo que o estilo e o vocabulário não representam um problema em si, uma vez que era o amanuense quem colocava a carta por escrito e poderia, em virtude disso, utilizar-se de um vocabulário próprio. Inclusive a expressão‘meu próprio punho’, para esses autores, não seria um apelativo, mas Paulo que no final do escrito feito pelo secretário ou amanuense queria escrever com sua própria letra a saudação final.
O problema da autoria vai influenciar diretamente na datação da carta. Aqueles que acreditam que a carta aos Colossenses foi escrita por Paulo vão datá-la no período correspondente ao cativeiro em Éfeso ou Roma. Aqueles que acreditam ser a carta não de Paulo, mas da escola paulina, vão datá-la entre os anos 80 ou 90.
3. Estrutura
Introdução e ação de graças: 1, 1-14
1ª Parte – a dignidade de Cristo: 1, 15-29
2ª Parte – as falsas doutrinas: 2, 1-23
3ª Parte – conseqüências morais: 3, 1 – 4, 6
Epílogo: 4, 7-18
4. Conteúdo e teologia
A comunidade de Colossos parece ter uma mistura de gnosticismo, cristianismo e judaísmo. Alguns versículos podem bem nos mostrar essa ideia:
2,8: ‘ninguém vos escravize’; ‘especulações da filosofia’.
2,9: ‘plenitude’ da divindade: não uma centelha.
2,10: ‘nele fostes levados à plenitude: poderia se pensar em um outro acesso a Deus que não por meio de Cristo.
2,11: ‘verdadeira circuncisão’: referência ao mundo judaico.
2,16: ‘comida e bebida’: asceses (gnósticas?); ‘sábados e luas novas’ (mundo judaico).
2,18: ‘culto dos anjos’: elemento gnóstico para ter acesso ao mundo espiritual.
2,19: ‘indagando sobre coisas que viu’ – o termo indagar aqui (embateuo) é próprio dos cultos mistéricos (gnosticismo).
Existiam dois tipos de sistemas gnósticos: os estáticos, onde não se podia ascender de uma à outra casta; os dinâmicos, onde se podia ascender de uma à outra casta através de asceses, jejuns e banhos rituais. Podemos perceber esses elementos na carta.
Existem várias explicações sobre como teria surgido esse sincretismo em Colossos. Alguns acreditam que seja influência da filosofia platônica. Outros afirmam que seriam doutrinas gnósticas que receberam uma roupagem judaica. Outros, ainda, afirmam que seria uma doutrina que acabou assimilando elementos do gnosticismo e das religiões de mistérios.
Vejamos como Paulo responde aos problemas da carta.
A primeira grande resposta de Paulo é chamado “hino cristológico das comunidades da Ásia Menor” de 1,15-20. Paulo afirma que o Verbo encarnado foi o primeiro na intenção de Deus, embora não tenha sido o primeiro na ordem da criação. Tudo foi criado em vista dele e tendo-o como modelo. Depois:
2,9: nele habita ‘corporalmente’ toda a plenitude da divindade (para determinar com qualquer oposição entre corpo e espírito que pudesse haver por conta de uma filosofia platônica).
2,12: co-sepultados (sintaphéntes); co-ressuscitados (sinegérthete); co-vivificados (sinedzuopoiésen – 2,13).
2,28: buscar a verdadeira ‘sabedoria’; ser ‘perfeitos em Cristo’ e não nas práticas ascéticas.
Em resumo, Paulo quer demonstrar que é a partir de Cristo, e não a partir das práticas ascéticas judaicas ou gnósticas, que se deve atingir Cristo.
1. Autenticidade
Trata-se de uma carta pessoal de Paulo, a um cristão que se converteu, muito provavelmente, através da sua pregação (cf. 19). Alguns quiseram negar a autenticidade da carta, talvez por tratar sobre o tema da escravidão sem execrá-la diretamente. Contudo, a maioria dos autores aceita o escrito como verdadeiramente Paulino, esclarecendo que o não negar diretamente a escravidão se dá em virtude do contexto no qual Paulo está inserido.
2. Local e data de composição
Como tratamos na introdução às epístolas do cativeiro, são três as possibilidades:
Éfeso (entre 54 e 57);
Cesaréia (entre 58 e 60);
Roma (entre 61 e 63).
A maioria dos autores não defende a ideia do cativeiro em Cesareia, por ficar longe de Colossos, de onde procedia Onésimo, e ser de difícil acesso. Os autores se dividem principalmente entre estas duas hipóteses: Roma e Éfeso. Roma, apesar de distante, tem o acesso muito facilitado pelo grande fluxo de navios entre a península itálica e Colossos. Em Éfeso, existia o grande Templo de Ártemis, onde era comum os escravos procurarem asilo.
Em virtude de Cl 4,7ss, alguns autores chegaram a afirmar que a carta a Filêmon havia precedido a carta aos Colossenses, que havia sido escrita depois, de um outro cativeiro de Paulo, onde ele trataria mais pormenorizadamente o tema da escravidão.
3. Ocasião e tema principal
Paulo se dirige a Filêmon, um amigo de Colossos, provavelmente convertido através da pregação do apóstolo (v. 19), com o intuito de lhe apresentar Onésimo, um escravo que ele havia convertido na prisão. Onésimo havia sido escravo de Filêmon e estava refugiando-se. Alguns autores chegam a afirmar que Onésimo estaria procurando refúgio junto de Paulo, onde acaba convertendo-se ao cristianismo, segundo o antigo costume grego de procurar refúgio junto aos grandes templos dos deuses. Onésimo também teria achado que, estando junto de Paulo que havia sido o instrumento de conversão de seu patrão a um novo Deus, ele estaria seguro.
Onésimo vem do grego, e significa útil. Era um nome bastante comum para os escravos e pessoas de classe baixa. No v. 11, Paulo faz um trocadilho com outra palavra grega, que também era usada como nome próprio para escravos: Chrestus. Paulo vai dizer que Onésimo que um Achrestus (inútil) e agora seria muito Chrestus(útil). Poderia ver aqui também um trocadilho com o sentido da pronúncia da palavra. Essa se assemelhava ao termo Christos. Paulo estaria dizendo, então, a Filêmon, que Onésimo outrora não era cristão, e agora se tornara outro Cristo, um verdadeiro cristão, por isso lhe seria muito útil, não somente como escravo, mas agora como irmão na fé.
Muitos autores questionam o escrito pelo fato dele não ser uma palavra dura de Paulo a respeito de uma situação a nossos olhos intolerável: a escravidão. Contudo, Paulo quer cristianizar essa relacionamento, uma vez que sabe não poder acabar com ele de uma única vez. Por isso, fala fala a Filêmon que ele agora deve estabelecer um novo nível de relacionamento com Onésimo, não mais o de simples escravo, mas o de irmão na fé.
Efésios
1. A Cidade de Éfeso
Situada na Ásia Menor, a cidade Éfeso recebeu esse nome devido a sua origem mitológica: teria sido fundada por uma amazona homônima, juntamente com a amazona Coresso, que teria dado nome a um importante monte da cidade. A cidade passou pelas mãos de diversas nações que a dominaram, como a Pérsia, a Macedônia etc. Por fim, em 133 a.C., passou pacificamente para as mãos dos romanos, em virtude do testamento do rei Átalo II, último dos reis de Pérgamo.
Em Éfeso ficava situado o importante templo de Ártemis, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Ártemis era cultuada em Éfeso como a grande mãe, sendo representada, algumas vezes, com seios numerosos. Em Roma, Ártemis foi identificada com Diana, e seu culto diferenciava-se bastante. Era cultuada em Roma como a deusa da caça, tendo bosques e animais sagrados especialmente a ela dedicados.
O povo de Éfeso vivia sobretudo do Comércio, especialmente nos meses de abril-maio quando, por ocasião das Artemísias (as festas em honra de Ártemis), a cidade se tornava muito movimentada e eram fabricadas pequenas miniaturas do Templo e amuletos que protegiam contra mau-olhado e coisas semelhantes.
2. Destinatários, lugar e data de composição
Já em meados do século II, encontramos a indicação da carta como sendo atribuída “aos Efésios” em Irineu e no Cânon Muratoriano (cópia da lista mais antiga que se conhece dos livros do
Novo Testamento). Contudo, segundo outros manuscritos antigos, não existe essa indicação da carta como sendo atribuída aos Efésios (cf. 1,1). Também Orígenes, S. Basílio e S. Jerônimo comentam a falta dessa indicação em manuscritos do seu tempo. Parece realmente estranho o fato de Paulo, mesmo depois de ter passado três anos em Éfeso, não relatar na carta nenhuma relação pessoal com os habitantes da cidade. Por outro lado, temos em Tertuliano, uma indicação que a carta seria, originalmente, dirigida aos Laodicenses. Assim sendo, temos três opiniões com relação aos destinatários da carta:
1º) Primeiro, os que defendem a autoria paulina;
2º) Depois, aqueles que acreditam que a carta era originalmente dirigida aos Laodicenses (seria a carta perdida, da qual fala Cl 4,16). Ela teria sido tardiamente atribuída aos Efésios por causa da passagem de Ap 3, 14-22, que fala que a Igreja de Laodicéia estava para ser cuspida ou vomitada da boca de Deus;
3º) Outros ainda, veem na carta aos Efésios uma carta circular, destinada a todas as comunidades da Ásia Menor. O destinatário ficaria em aberto, devendo ser preenchido com o nome de cada comunidade. Em virtude de ser Éfeso a capital da província romana da Ásia, o escrito acabou tradicionalmente atribuído a esta comunidade.
Quanto ao lugar e à data de composição, temos duas hipóteses:
1º) Para os que aceitam a autenticidade: teria sido escrita de Roma, no primeiro cativeiro, e sido enviado por Tíquico, assim como a carta aos Colossenses (Ef 6,21-22; Cl 4,7-8).
2º) Para os que não aceitam a autenticidade: a menção ao cativeiro seria falsa e a carta teria sido escrita de algum lugar da Ásia Menor, por volta do final do século I.
3. Estrutura
Introdução: 1,1-2
Parte Dogmática (encerrada pela doxologia de 3,20): 1,3 – 3,21
Parte Exortativa (aplicação da doutrina à vida prática): 4,1 – 6,20
Epílogo: 6,21-24
4. Relação com Colossenses
a) Semelhança na linguagem;
b) Formas hínicas (Cl 1, 15-20; Ef 1, 2-14);
c) Temas comuns:
Cristo, cabeça da Igreja (Cl 1,18; Ef 1,22s);
Paz pelo sangue da cruz (Cl 1,20; Ef 2,14-15);
d) Dependência literária (Cl 1,25 / Ef 3,2; Cl 1,26 / Ef 3, 3-5; Cl 2,19 / Ef 4,15-16);
e) Efésios sintetiza textos de Colossenses (Ef 1,7 / Cl 1,14.20)
f) Efésios parece desenvolver alguns temas de Colossenses (Ef 5,22 – 6,9 e Cl 3,18 – 4,1)
Como Efésios é mais extensa e desenvolve melhor alguns temas, alguns autores afirmam que ela teria se servido de Colossenses e seria posterior a ela.
Ainda hoje, as Cartas Pastorais. Não percam!
Diácono Flávio – PSF
[1] Cf. Ballarini.
Introdução à Bíblia. Vol.V/2. pp. 62-63
[2] Cf. Teodorico Ballarini.
Introdução à Bíblia. Vol. V/2.pp. 467-473