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domingo, 1 de julho de 2012

APARIÇÕES DE FÁTIMA

O jornal "O Século" publica um artigo de Avelino de Almeida, onde este descreve o que presenciou. 



COISAS ESPANTOSAS: O SOL BAILOU AO MEIO DIA!



As aparições da Virgem - Em que consistiu o sinal do céu - Muitos milhares de pessoas afirmam ter-se produzido um milagre: A guerra e a paz.



Lucia, de 10 anos; Francisco, de 9, e Jacinta, de 7, que na charneca de Fátima, concelho de Vila Nova de Ourem, dizem ter falado com a Virgem Maria. 



OUREM, 13 de Outubro

Fonte: Dicionário da Fé


Ao saltar, após demorada viagem, pelas dezesseis horas de Ourem, na estação Chão de Maçãs, onde também apearam pessoas religiosas vindas de longes terras para assistir ao "milagre". Perguntei, de chofre, a um rapazote do "char-á-bancs" da carreira se já tinha visto a Senhora. Com seu sorriso sardoico e o olhar enviezado, não hesitou em responder-me: 

- Eu cá só lá vi pedras, carros, automóveis, cavalgaduras e gente! 

Por um fácil equivoco, o trem que nos devia conduzir a Judah Ruah e a mim até à vila, não apareceu e decidimo-nos a enfrentar corajosamente cerca de duas léguas por não haver logar para nós na diligência e estarem, desde muito, afreguezadas as carriotas que aguardavam passageiros. Pelo caminho, topamos os primeiros ranchos que seguiam em direção ao local santo, distante mais de vinte quilômetros bem medidos. 

Homens e mulheres vão quase todos descalços - elas com saquiteis à cabeça, sobrepujados pelas sapatorras; eles abordoando-se a grossos vara-paus e cautelosamente munidos também de guarda-chuva. Dir-se-iam, em geral, alheados do que se passa à sua volta, num desinteresse grande da paizagem e dos outros viandantes, como que imersos em sonho, rezando numa triste melopeia o terço. Uma mulher rompe com a primeira parte da ave-maria, a saudação; os companheiros, em coro, continuam com a segunda parte, a suplica. Num passo certo e cadenciado, pisam a estrada poeirenta, entre pinhaes e olivedos, para chegarem antes que se cerre a noite ao sitio da aparição, onde, sob o relento e a luz fria das estrelas, projetam dormir, guardando os primeiros lugares junto da azinheira bendita para no dia de hoje verem melhor. 

À entrada da vila, mulheres do povo a quem o meio já infectou com o vírus do ceticismo, comentam, em tom de troça, o caso do dia: 

- Então vais ver amanhã a santa?

- Eu, não. Se ela ainda cá viesse! 

E riem-se com gosto, emquanto os devotos proseguem indiferentes a tudo o que não seja o objetivo da sua romagem. Em Ourem só por uma amabilidade extrema se encontra aposentadoria. Durante a noite, reunem-se na praça da vila os mais variados veículos conduzindo crentes e curiosos sem que faltem velhas damas vestidas de escuro, vergadas já ao peso dos anos, mas faiscando-lhes nos olhos o lume ardente da fé que as animou ao ato corajoso de abandonar por um dia o inseparavel cantinho da sua casa. Ao romper d'alva, novos ranchos surgem intrépidos e atravessam, sem pararem um instante, o povoado, cujo silêncio quebram com a harmonia dos cânticos que vozes femininas, muito armadas, entoam num violento contraste com a rudeza dos tipos... 

O sol nasce, mas o cariz do céu ameaça tormenta. As nuvens negras acastelam-se precisamente sobre as bandas de Fátima. Nada, todavia, detém os que por todos os caminhos e servindo-se de todos os meios de locomoção para lá confluem. Os automóveis luxuosos deslisam vertiginosamente, tocando as buzinas; os carros de bois arrastam-se com vagar a um lado da estrada; as galeras, as vitórias, os caleches fechados, as carroças nas quais se improvisaram assentos vão ajoujados a mais não poderem. Quase todos levam com os farneis, mais ou menos modestos, para as bocas cristãs a ração de folhelho para os irracionaes que o "poverelo" de Assis chamava nossos irmãos e que cumprem valorosamente a sua tarefa... Tilinta uma ou outra guiseira, vê-se uma carrocinha adornada de buxo; no entanto, o ar festivo é discreto, as maneiras são compostas e a ordem absoluta... Burrinhos chutam à margem da estrada e os ciclistas, numerosissimos, fazem prodígios para não esbarrar de encontro aos carros. 

Pelas dez horas, o céu tolda-se totalmente e não tardou que entrasse a chover a bom chover. As cordas de água, batidas por um vento agreste, fustigam os rostos, encharcando o macadame e repassando até os ossos os caminhantes desprovidos de chapéus e de quaisquer outros resguardos. Mas ninguém se impacienta ou desiste de proseguir e, se alguns se abrigam sob a copa das arvores, junto dos muros das quintas ou nas distanciadas casas que se debruçam ao longo do caminho, outros continuam a marcha com uma impressionante resistência, notando-se algumas senhoras cujos vestidos colados aos corpos, por efeito do ímpeto e da pertinácia da chuva, lhes desenham as formas como se tivessem saído do banho! 

O ponto da charneca de Fátima, onde se disse que a Virgem aparecera aos pastorinhos do lugarejo de Aljustrel, é dominado numa enorme extensão pela estrada que corre para Leiria, e ao longo da qual se postaram os veículos que lá conduziram os peregrinos e os mirones (espectadores). Mais de cem automóveis alguém contou e mais de cem bicicletas, e seria impossível contar os diversos carros que atravancaram a estrada, um deles, o auto-ônibus de Torres Novas, dentro do qual se irmanavam pessoas de todas as condições sociaes. 

Mas o grosso dos romeiros, milhares de criaturas que foram de muitas léguas ao redor e a que se juntaram fiéis idos de varias províncias, alem-tejanos e algarvios, minhotos e beirões, congregam-se em torno da pequenina azinheira que, no dizer dos pastorinhos, a visão escolhera para seu pedestal e que podia considerar-se como que o centro de um amplo círculo em cujo rebordo outros espectadores e outros devotos se acomodam. Visto da estrada, o conjunto é simplesmente fantástico. Os prudentes campônios, abarracados sob os chapeus enormes, acompanham, muitos deles, o desbaste dos parcos farnéis com o conduto espiritual dos hinos sacros e das dezenas do rosário. 

Não há quem tema enterrar os pés na argila empapada, para ter a dita de ver de perto a azinheira sobre a qual ergueram um tosco pórtico em que bamboleiam duas lanternas... Alternam-se os grupos que cantam os louvores da Virgem, e uma lebre, espavorida, que galga matagal em fora, apenas desvia as atenções de meia dúzia de zagaletes que a alcançam e prostram à cacetada... 

E os pastorinhos? Lúcia, de 10 anos, a vidente, e os seus pequenos companheiros, Francisco, de 9, e Jacinta, de 7, ainda não chegaram. A sua presença assinala-se talvez meia hora antes da indicada como sendo a da aparição. Conduzem as rapariguinhas, coroadas de capelas de flores, ao sítio em que se levanta o pórtico. A chuva cai incessantemente mas ninguém se desespera. Carros com retardatários chegam à estrada. Grupos de freis ajoelham na lama e a Lucia pede-lhes, ordena que fechem os chapéus. Transmite-se a ordem, que é obedecida de pronto, sem a mínima relutância. Ha gente, muita gente, como que em êxtase; gente comovida, em cujos lábios secos a prece paralisou; gente pasmada, com as mãos postas e os olhos borbulhantes; gente que parece sentir, tocar o sobrenatural... 

A criança afirma que a Senhora lhe falou mais uma vez, e o céu, ainda caliginoso, começa, de súbito, a clarear no alto; a chuva para e pressente-se que o sol vai inundar de luz a paisagem que a manhã invernosa tornou ainda mais triste...

A "hora antiga" é a que regula para esta multidão, que cálculos desapaixonados de pessoas cultas e de todo o ponto alheias ás influências místicas computam em trinta ou quarenta mil creaturas... A manifestação miraculosa, o sinal visível anunciado está prestes a produzir-se - asseguram muitos romeiros... E assiste-se então a um espetáculo único e inacreditável para quem não foi testemunha dele. Do cimo da estrada, onde se aglomeram os carros e se conservam muitas centenas de pessoas, a quem escasseou valor para se meter à terra barrenta, vê-se toda a imensa multidão voltar-se para o sol, que se mostra liberto de nuvens, no zenit. O astro lembra uma placa de prata fosca e é possivel fitar-lhe o disco sem o minimo esforço. Não queima, não cega. Dir-se-ia estar-se realisando um eclipse. Mas eis que um alarido colossal se levanta, e aos espectadores que se encontram mais perto se ouve gritar:

- Milagre, milagre! Maravilha, maravilha! 

Aos olhos deslumbrados daquele povo, cuja atitude nos transporta aos tempos biblicos e que, pálido de assombro, com a cabeça descoberta, encara o azul, o sol tremeu, o sol teve nunca vistos movimentos bruscos fora de todas as leis cósmicas - o sol «bailou», segundo a típica expressão dos camponeses.. Empoleirado no estribo do auto-ônibus de Torres Novas, um ancião cuja estatura e cuja fisionomia, ao mesmo tempo doce e enérgica, lembram as de Paul Déroulède, recita, voltado para o sol, em voz clamorosa, de principio a fim, o Credo. Pergunte quem é e dizem-me ser o sr. João Maria Amado de Melo Ramalho da Cunha Vasconcelos. 

Vejo-o depois dirigir-se aos que o rodeiam, e que se conservaram de chapéu na cabeça, suplicando-lhes, veementemente, que se descubram em face de tão extraordinária demonstração da existência de Deus. Cenas idênticas repetem-se noutros pontos e uma senhora clama, banhada em aflitivo pranto e quase numa sufocação: 

- Que lástima! Ainda há homens que se não descobrem diante de tão estupendo milagre! E, a seguir, perguntam uns aos outros se viram e o que viram. O maior número confessa que viu a tremura, o bailado do sol; outros, porém, declaram ter visto o rosto risonho da própria Virgem, juram que o sol girou sobre si mesmo como uma roda de fogo de artifício, que ele baixou quase a ponto de queimar a terra com os seus raios... Ha quem diga que o viu mudar sucessivamente de côr... São perto de quinze horas. 

O céu está varrido de nuvens e o sol segue o seu curso com o esplendor habitual que ninguem se atreve a encarar de frente. E os pastorinhos? Lúcia, a que fala com a Virgem, anuncia, com ademanes teatrais, ao colo de um homem, que a transporta de grupo em grupo, que a guerra terminara e que os nossos soldados iam regressar... Semelhante nova, todavia, não aumenta o júbilo de quem a escuta. O sinal celeste foi tudo. Há uma intensa curiosidade em ver as duas rapariguinhas com suas grinaldas de rosas, há quem procure oscular as mãos das «santinhas», uma das quais, a Jacinta, está mais para desmaiar do que para danças", mas aquilo por que todos anciavam - o sinal do céu - bastou a satisfaze-los, a radica-los na sua fé de carvoeiro. Vendedores ambulantes oferecem os retratos das crianças em bilhetes postais e outros bilhetes que representam um soldado do Corpo Expedicionário Português "pensando no auxilio da sua protetora para salvação da Pátria" e até uma imagem da Virgem como sendo a figura da visão... 

Bom negócio foi esse e decerto mais centavos entraram na algibeira dos vendedores e no tronco das esmolas para os pastorinhos do que nas mãos estendidas e abertas dos leprosos e dos cegos que, acotevelando-se com os romeiros, atiravam aos ares seus gritos lancinantes...

O dispersar faz-se rapidamente, sem dificuldades, sem sombra de desordem, sem que fosse mister que o regulasse qualquer patrulha da guarda. Os peregrinos que mais depressa se retiram, correndo estrada fora, são os que primeiro chegaram, a pé e descalços com os sapatos à cabeça ou dependurados nos varapaus. Vão, com a alma em laus (louvor) perene, levar a boa nova aos lugarejos que não se despovoaram de todo. E os padres? Alguns compareceram no local, sorridentes, enfileirando mais com os espectadores curiosos do que com os romeiros ávidos de favores celestiaes. Talvez um ou outro não lograsse dissimular a satisfação que no semblante dos triunfadores tantas vezes se traduz... 

Resta que os competentes digam de sua justiça sobre o macabro bailado do sol que hoje, em Fátima, fez explodir hosanas dos peitos dos fiéis e deixou naturalmente impressionados - ao que me asseguraram sujeitos fidedignos os livres pensadores e outras pessoas sem preocupações de natureza religiosa que acorreram à já agora celebrada charneca.

Avelino de Almeida 

Fonte: Site Montfort. 

Publ.: "O Século", Lisboa (edição da manhã) 37 (l2.876)

15 Out. 1917, p. 1, cols. 6-7; p. 2, col. 1.


15 Out. 1917, p. 1, cols. 6-7; p. 2, col. 1.






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